Post de Berto Filho
Estava procurando uma inspiração para falar sobre o escritor Gabriel García Márquez, o falecido mais famoso, mundialmente, da semana que passou, e dei de cara, no blog do Ricardo Noblat, com um texto de Ana Beatriz Magno sobre a influência do jornalismo na carreira de Gabo, como era chamado na linguagem popular e afetiva. Então, preferi abrir este espaço para Ana depor sobre ele. Ela o estudou mais e continua a estudar sua trajetória.
Repórter, Ana Beatriz Magno, Bia, está escrevendo "O Jornalismo nos Tempos da Reportagem", tese de doutorado sobre a obra jornalística de García Márquez e Ernest Hemingway. O trabalho tem a orientação do professor Luiz Gonzaga Motta e interrompe quase duas décadas de dedicação exclusiva de Bia ao jornalismo, onde ganhou prêmios como o Esso de Reportagem em 2008 e o Rei da Espanha.
O jornalismo nos tempos das reportagens de Gabo, por Ana Beatriz Magno
Gabito ficou na ponta dos pés, pendurou-se no parapeito de pedra e, pela fresta do basculante, passou longos minutos espiando o vai-e-vem de jornalistas. Era maio de 1948, e pela primeira vez olhava as entranhas de uma redação.
Sentiu pânico e fascinação com aquele ambiente inquieto, comandado por uma criatura de meia idade, com cabelos negros de índio e terno de linho branco que escrevia freneticamente com lápis vermelho.
O homem se chamava Clemente Manual Zabala e dirigia com mão de ferro o El Universal, jornal recém-criado com pretencioso projeto de fazer jornalismo independente.
Zabala procurava repórteres criativos na escrita e ousados na apuração. Gabito agendou uma entrevista de emprego, mas desistiu de comparecer depois do que testemunhara pendurado na janela. Saiu correndo e trancou-se em casa. Só abriu a porta porque o amigo que agendara a entrevista berrava como louco no meio da rua dizendo que editor não espera ninguém e que não havia mais tempo para frescuras.
Gabito se rendeu. Ao entrar no jornal, foi recebido sem pompa pelo temido chefe, conheceu as instalações, a rotativa e dois velhos linotipos.
Ao final, achou que nada havia sido acertado e que sua rotina seguiria dividida entre as mesas de bar e as entediantes aulas de direito impostas pelo pai.
Gabo (segundo à direita) na redação de El Heraldo, 1953, Barranquilla.
Foto: Arquivo da FNPI
Já o editor concluiu que arrebanhara reforço para sua equipe e comemorou a contratação em editorial publicado com a notícia de que Gabriel José de La Concordia García Márquez era o novo funcionário de El Universal.
Ao ler a notícia, Gabito percebeu que só lhe restava assumir o cargo e engrenar no melhor ofício do mundo - como definiria o jornalismo meio século mais tarde. Zabala proibiu que o novo contratado fosse chamado de Gabito - achava o diminutivo ridículo para um jornalista sério. Agora, ele era Gabo.
Nascido em 6 de março de 1927 no minúsculo povoado de Aracataca, no coração úmido da Colômbia, Gabo sempre soube o que queria fazer da vida.
“Minha primeira e única vocação é o jornalismo. Não comecei sendo jornalista por casualidade, por necessidade ou por azar. Comecei sendo jornalista porque o que queria era ser jornalista”, conta em Gabo Periodista, livro ainda não publicado no Brasil, e editado pela FNPI, instituição criada por ele para qualificar jornalistas.
García Márquez não largou o jornalismo mesmo depois de escritor consagrado. Ao todo, publicou 1.056 textos em jornais e revistas latino-americanos e europeus.
Foi editor, cronista, colunista, repórter, correspondente estrangeiro e empresário de comunicação. Nos anos 50, deu furos internacionais com reportagens memoráveis sobre mazelas sociais e escândalos de corrupção.
Corajoso, atravessou a Cortina de Ferro, denunciou os males do stalinismo, construiu perfis irretocáveis de gente comum e de chefes de Estado. Fez ácidas entrevistas com polêmicos personagens e matérias nem tão perfeitas assim.
Mas apesar desse imenso acervo, há pouquíssimos estudos no Brasil sobre sua obra jornalística. O Banco de Teses do IBICT, por exemplo, registra apenas três pesquisas sobre o repórter Gabo.
O contraste é ainda mais acachapante quando lemos os vários artigos que o colombiano escreveu sobre a crise da reportagem na era contemporânea.
Gabo tinha lado. Não acreditava em neutralidade jornalística. Era socialista e adotou tom militante em artigos publicados a partir dos anos 60.
Bombardeou com perguntas ácidas guerrilheiros Montoneros, entrevistou o ex-agente da Cia, Phillip Agee, o escritor francês Regis Debray, o espanhol Felipe Gonzalez e os líderes da Revolução dos Cravos. De Portugal. Fez mais.
Peregrinou por Angola, percorreu Cuba de cabo a rabo e defendeu com unhas e palavras o regime de Fidel Castro.
Muitos desses textos têm valiosa qualidade jornalística, mostram figuras pouco presentes na imprensa da época e apresentam lados da história raramente divulgados nos grandes jornais. Outros, no entanto, pecam pelo tom propagandista.
“É extraordinário que um escritor que tenha produzido tantas obras literárias destinadas à eternidade estética seja também um dos jornalistas mais notáveis do seu tempo. Entre os diversos gêneros e temas jornalísticos, há muito pouco que ele não tenha experimentado. Nos anos 50, chegou a ser, provavelmente, o repórter mais exitoso da Colômbia, com uma série de furos sensacionais”, resume Gerald Martin, autor de uma das mais completas biografias sobre o colombiano.
Martin divide a trajetória jornalística de Gabo em quatro períodos. Nos próximos quatro dias, o Blog do Noblat publicará histórias de cada uma das fases do repórter Gabo, morto aos 87 anos, na última quinta-feira 17 de abril.
Aos amigos, ele dizia que gostaria de ser lembrado com as mesmas palavras elegantes que, em 1961, usou para escrever, com lágrimas nos olhos, a notícia da morte de seu ídolo Ernest Hemingway: “um trabalhador bom e honrado”.
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