sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

UMA CORTADA DECISIVA

Postado por Berto Filho

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Uma cortada decisiva

Ana Moser, autora do texto extremamente lúcido e bem fundamentado que segue este intróito, publicado na edição 781 da revista Carta Capital, e também dirigente do Instituto Esporte Educação, filiado à Rede Esporte pela Mudança Social - REMS - , é uma lenda do voleibol feminino brasileiro. Considerada uma das maiores atacantes brasileiras da história do voleibol, fez parte da geração que trouxe a primeira medalha olímpica para o voleibol feminino no coletivo.  Acumulou medalhas na categoria de base da Seleção Brasileira pela qual também disputou três edições dos jogos olímpicos de verão, medalhas em Jogos Pan-Americanos, Copa do Mundo, Copa dos Campeões e Campeonato Mundial. Em várias competições foi a capitã da seleção principal e obteve títulos importantes.

Sua cortada agora vale ouro porque ela simplesmente alerta o país para a necessidade de o Brasil ser o país do esporte e não apenas do futebol. E não por razões meramente esportivas. Ana Moser recomenda "um sistema de esporte para que o País, governo e sociedade, estabeleçam uma visão coletiva do que é, para quem, de que maneira e para que serve o esporte". 

Concordo com ela. Presido a ong Organização Surfe do Brasil, também filiada à REMS onde ensinamos natação no mar e surfe para crianças e adolescentes das comunidades da orla brasileira. Estamos no mesmo barco, na mesma prancha e na mesma rede.
O esporte transforma vidas, forma cidadãos, projeta a imagem do país no mundo e é o maior embaixador que uma nação pode ter.    

ANA MOSER

O futebol é a única cultura esportiva presente em todo o país. Estimular a expansão de outras modalidades é também uma questão de saúde pública.

Apesar de assistir esporte, o brasileiro faz pouco esporte. Mais de 60% das crianças e jovens das escolas brasileiras são considerados insuficientemente ativos, e cerca de 30% dos maiores de 18 anos são considerados ativos.
Isso acontece porque não temos cultura de prática esportiva ou estrutura suficiente para todos no País. A exceção é o futebol, que atinge diretamente uma parcela da nossa população, especialmente homens.

O futebol é a única cultura esportiva amplamente estabelecida no Brasil e acontece espontaneamente, com ou sem apoio - crianças, jovens e adultos se organizam em times, campeonatos, peladas e brincadeiras com abola nos pés. Acontece nas pequenas, médias e grandes cidades de norte a sul, do campo de várzea na Selva Amazônica, na hora do recreio de uma escola pública qualquer, no gramado do Maracanã: está em todo o lugar.
E a Seleção Brasileira é a representação máxima dessa cultura.

Imagine essa cultura do futebol em todas as modalidades e manifestações esportivas. Atingindo não só homens que jogam bola, mas homens que não têm habilidade com a redonda nos pés, assim como meninas, moças e mulheres com os mais diferentes interesses e relações com a prática motora, o lazer, a saúde e a competição. Este seria um País inteiro dentro do esporte, uma visão do ideal de futuro.

Existe um esporte diferente para cada indivíduo, com objetivos e estratégias adequadas a cada perfil e de acordo com cada contexto. O voleibol que eu joguei em três Olimpíadas pouco tem a ver com o jogo de pré-adolescentes do 5º ano do Ensino Fundamental. Nem tem a ver com a brincadeira casadas contra solteiras na praia durante as férias. São diferentes jeitos de jogar vôlei, no formato e no propósito. Porém, são iguais em um princípio: todos os diferentes esportes e atividades físicas impactam positivamente na vida de quem pratica regularmente.

Estudos internacionais apontam evidências concretas no desenvolvimento do que os cientistas chamam de capital humano: social, individual, intelectual, emocional, físico e financeiro. Cada tipo de atividade motora desenvolve mais uns ou outros, como, por exemplo, uma pessoa que corre quatro vezes por semana vai desenvolver mais o capital físico, enquanto num grupo de amigos que jogam basquete no parque uma vez por semana a pessoa vai desenvolver mais o capital social. Todos os conhecidos benefícios do esporte, bem-estar, qualidade de vida, cidadania etc., podem ser encontrados nesses capitais humanos.

Por outro lado, estamos em uma escalada mundial da inatividade física, a um custo de centenas de bilhões de dólares a cada ano. O estilo de vida das "telas", a migração para as cidades, a falta de investimento em espaços para atividades físicas e de políticas educativas para hábitos ativos são as principais causas da aceleração dessa epidemia mundial. As conseqüências são despesas com saúde de 2,7 mil dólares por ano a mais para cada pessoa inativa, 51% mais chances de atraso na vida acadêmica, 30% mais chances para crianças inativas se tornarem obesas, uma semana a menos de trabalho por ano por doença e milhões de mortes prematuras na conta da falta de atividade física.

Um sistema de esporte para que o País, governo e sociedade, estabeleçam uma visão coletiva do que é, para quem, de que maneira e para que serve o esporte. Que se definam os agentes do sistema, quem são, suas demandas e responsabilidades para fazer acontecer os diferentes tipos de esporte para os diferentes públicos. E que se construam as estratégias para o financiamento e assim viabilizar de maneira contínua e sustentável as práticas esportivas em cada cidade do Brasil.

0 primeiro passo é estabelecer um pacto nacional que descreva as características de cada manifestação esportiva e defina as finalidades para os diferentes públicos em cada fase da vida. No Brasil, o esporte é orientado por três manifestações: educacional, participação e rendimento. Seja na definição legal, seja na prática, há, no entanto, uma confusão entre os limites que separam as manifestações, seus objetivos e espaços consagrados. Qual é o esporte da escola, quem fomenta o lazer esportivo, quem cuida da competição escolar e do esporte de base etc. Esse tipo de categorização leva a pensar mais na ferramenta do que no beneficiário.

O Canadá é bom exemplo de uma política orientada para o público-alvo. A visão da política esportiva canadense (Canadian Sport for Life) é de uma nação ativa e saudável, 100% da população, dos 0 aos 80 anos, integrada a um estilo de vida ativo. Dentro desse pacto nacional são definidos os parâmetros para cada faixa etária, contemplando os diferentes objetivos de cada pessoa com o esporte.

Essa visão orienta, por exemplo, que a especialização e os treinamentos das modalidades esportivas se iniciem após a "alfabetização motora" e para aqueles com perfil adequado, o que representa cerca de 30% dos canadenses em torno de 12 anos, ou 15% dos jovens de 18 anos. Outra parcela seguirá com hábitos ativos pela vida, outros levarão mais a sério e serão atletas amadores, quase 40% da população com 40 anos de idade. E assim por diante.

O Brasil precisa estabelecer essa visão nacional, detalhar, disseminar e integrar, numa política ampla e qualificada, o sem--número de iniciativas de programas públicos e privados, confederações, federações e ligas, clubes e associações, universidades, ONGs e indivíduos que têm feito o esporte acontecer no Brasil.

O esporte no País tem se organizado a partir de quatro pilares principais: o sistema federativo (federações e confederações), os clubes e associações, o sistema educacional e o esporte comunitário. O setor público funciona como um agente transversal que trabalha como apoio em política, estrutura e financiamento para os outros pilares, por vezes tomando para si responsabilidades que seriam de outros setores.

A função do sistema, a partir da visão nacional, é facilitar o funcionamento dessa rede de agentes, estabelecer responsabilidades para municípios, estados, sistema federativo, combinar programas das pastas de Educação, Saúde e outros, estabelecer metas e cronogramas articulados, ordenar e qualificar as práticas.

Um exemplo da organização de agentes esportivos em redes é o School Sport Partnership, a política pública que a Inglaterra implantou de 2002 a 2010 e que tinha como visão incluir 100% dos alunos das escolas numa rotina de cinco horas de atividade motora por semana, meta alcançada em meados de 2008.

A estratégia foi criar redes regionais tendo como centro escolas especialistas em esporte, que no Brasil seriam as escolas de ensino integral, articulando planos e ações a envolver os poderes públicos nacional e regionais, agências de educação e esporte, escolas secundárias e fundamentais, clubes locais, sistema federativo e outros atores da comunidade para garantir a carga semanal de atividade física para os alunos de cada rede, a coordenação nacional do programa, qualificação da prática, ampliação das competições e festivais com participação das comunidades locais, como também a ampliação da participação dos profissionais do esporte, além do engajamento de jovens.

No Brasil, a atual política de esporte na escola é o Segundo Tempo (Ministério do Esporte) no Mais Educação (Ministério da Educação). Em 2013, foram 6 mil escolas com esporte no contraturno e a meta para 2014 é saltar para 26 mil escolas e 60 mil em 2015, cerca de 35% do total geral de escolas públicas. O exemplo inglês pode ajudar a resolver a questão dos outros 65%, assim como também a mesma ideia de redes regionais para articular as redes de esporte e de saúde, para ampliar o número de jovens e adultos ativos. Ou redes de clubes, escolas e federações esportivas, para qualificar e ampliar o esporte competitivo de base por todo o País. Articular, planejar, estabelecer metas e cronogramas: não há segredo nessa receita.

O financiamento do esporte no Brasil ainda tem muito a evoluir, é fruto de acasos ou iniciativas isoladas e sem continuidade. A média de recurso das secretarias municipais de Esporte das 12 sedes da Copa do Mundo gira em torno de 0,4% dos respectivos orçamentos municipais. Há também financiamento por renúncia fiscal - Imposto de Renda (federal), ICMS (estadual), ISS e IPTU (municipal) -, mas com impacto bastante pequeno em volume e capilaridade.

O fato de o Brasil receber a Copa do Mundo e a Olimpíada ampliou e concentrou o investimento público nas confederações e nos atletas de elite, investimento que será crescente até 2016 e que deverá cair na seqüência.

É preciso ampliar e diversificar as fontes de financiamento e garantir que as prioridades apontadas na legislação sejam observadas. Democratizar as leis de incentivo em todos os níveis federativos, fundos para o esporte ligados a conselhos de esporte e combinação de recursos entre as pastas de Esporte, Educação, Saúde e o sistema federativo do esporte seriam as primeiras e principais iniciativas para que seja possível implantar as estratégias orientadas pela visão de uma Nação ativa para todos.

 

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